FIlhos
Sílvia Alves
Eu preciso lutar pelos direitos da minha filha

Depoimento “Eu,mãe”: Sílvia Alves, 26 anos, bailarina, pesquisadora de danças negras, turbantista e produtora cultural, mãe de uma menina de um ano.

Um povo que não conhece a sua própria História não tem auto-estima. E o que eu quero e devo fazer pela minha filha é ajudar a construir a dela. Eu quero que ela cresça sabendo que o cabelo crespo dela é lindo. Quero contar pra ela histórias sobre os negros que não são contadas.

A minha filha vai precisar se preparar para viver em um sistema que ainda é racista. E ela precisa das ferramentas para lutar contra isso: conhecimento e postura.

E eu sempre vou ser o exemplo dela.

A minha gravidez não foi planejada. Eu sou bailarina e trabalho também como pesquisadora de danças negras – além de ser produtora cultural, turbantista e, claro, mãe! Eu conheci o pai da minha filha quando estava fazendo um trabalho de pesquisa de danças de Moçambique. Ele é de lá e durante os três meses em que eu trabalhei com ele, eu engravidei. Porém nunca tivemos avanços em nossa relação.

A minha gravidez foi muito agitada e eu dancei até uma semana antes da minha menina nascer. Eu me prepararei para um parto natural, com parteira e doula. Mas a situação emocional pesou, eu perdi muito líquido e tive que ser submetida a uma cesárea de emergência. Foi uma experiência bem traumática pois o parto natural era muito importante para mim. Depois que minha filha nasceu, eu tive depressão pós-parto.

Houve momentos nessa história em que eu perdi a mim mesma. Eu acho que a perda de si mesma é algo que acontece com muitas mulheres quando passam por problemas e se deixam levar por pensamentos opressores e machistas que permeiam a sociedade em que vivemos, ainda mais quando nós somos mães solo.

Porém nós não precisamos acreditar nas histórias contadas. Nós podemos fazer a nossa própria história com altivez e sabedoria. Não precisamos entregar nossos valores assim tão fácil, calar nossa voz, desligar nosso canto. Não podemos permitir que nossa vida criativa se perca, as boas notícias consistem em podermos reviver nossas vidas.

E a mensagem positiva disso tudo é que eu me fortaleci. Saí de uma situação que estava acabando comigo. Voltei a ser eu mesma. Eu me reencontrei por causa da minha filha.

Lutar pela minha filha significa também se ater as questões raciais. Nós duas vivemos em um país onde o racismo é estrutural e velado. São olhares, maneiras como as pessoas nos tratam.

Somente agora eu começo a ver uma mudança na questão da estética negra. Eu passei a minha adolescência inteira alisando o cabelo. Temos um grupo de mulheres negras onde muitas delas têm cicatrizes no rosto por passarem ferro quente no cabelo.

Um dia, eu estava com a minha filha em uma farmácia e uma mulher nos olhou com cara de nojo, vendo os nossos cabelos, crespos. Iguais.

Lindos.

Em outro dia, eu estava com a minha filha no sling em um ponto, esperando um ônibus. De repente, uma mulher me abordou cheia de moedas na mão. Assustada, eu perguntei o que era aquilo.

“Isso é pra você comprar alguma coisa para a sua filha”.

Foi humilhante. E o que mais doeu foi a certeza que ela tinha de que estava fazendo a coisa certa.

Quando eu disse que não precisava daquele dinheiro, ela insistiu, incrédula. Quando eu recusei novamente, ela saiu de perto.

No dia seguinte, aconteceu de novo.

Eu também estava em um ponto de ônibus com a minha filha. Aqui em Natal a gente entra pela porta da frente, mas não existem bancos antes da catraca. Então, como a minha filha está sempre no sling, eu peço para entrar pela porta de trás, pago a passagem e giro a catraca.

Naquele dia não foi tão simples assim.

Quando o ônibus chegou e eu fiz o pedido habitual, mas o motorista gritou que haviam câmeras e ele não podia fazer aquilo. Por alguns instantes eu não entendi nada. Uma mulher disse que eu estava com uma criança. Nada aconteceu. Na verdade, só aconteceu quando outra disse:

- Motorista, ela vai pagar.

E a porta de trás do ônibus se abriu.

Isso é preconceito racial por conta da minha aparência. Ou se eu fosse branca essas duas situações teriam acontecido? É claro que não. O racismo cotidiano precisa ser desconstruído.

Mesmo diante desse episódio, o meu dia não foi perdido. Eu já estava dentro do ônibus, com vergonha e triste, quando um fotógrafo entrou. Depois de algum ensaio, ele me abordou. Explicou que tira fotos de pessoas com estéticas diferentes e que estudou a questão do empoderamento negro.

E pediu para tirar fotos minhas e da minha filha. E eu aceitei. Naquele dia, e em tantos outros dias, eu estava com uma roupa colorida. A roupa mostra quem a gente é e eu faço questão de enaltecer a cultura negra através dela.

A minha filha está com um pouco mais de um ano. Está começando a andar, mas já adora dançar. Eu quero aproveitar cada segundo do crescimento dela. Ela me acompanha onde eu vou e eu quero que ela cresça sabendo quem ela é, conhecendo a sua história.

Eu acredito muito em sonhos. E há uns tempos atrás eu sonhei que eu virava uma leoa para proteger a minha filha. Eu preciso lutar por ela, pelos direitos dela. Eu sei que muitas mulheres passam por isso, mas eu também sei que poucas têm essa força.