Educação
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A falsa moral contra os games

O pesquisador em Ciências Criminais Salah H. Khaled Jr lançou este mês o livro ‘Videogame e violência: cruzadas morais contra os jogos eletrônicos no Brasil e no mundo’. Segue abaixo a entrevista que concedeu ao jornal O Globo. Achamos muito interessante:

O senhor afirma que a sociedade mantém um antigo protesto moral contra os games. Quando ele começou?

A cruzada contra os games remete à década de 1970, com um jogo chamado “Death race”, que pegou emprestado o nome de um filme. Mas havia uma diferença básica, e que foi deliberadamente ignorada pela imprensa na época: no longa-metragem, seres humanos são atropelados; no game, são monstros. Em entrevista a uma repórter, um psicólogo que trabalhava com detentos agressivos disse que eles teriam adorado esses desafios. Portanto, espalhou-se a noção de que os games provocam um interesse mórbido, e que seus adeptos teriam algum problema. Com o tempo, a criminalização cultural ficou ainda mais intensa.

A imprensa destacou como os dois jovens envolvidos no massacre de Columbine, nos EUA (1999), adoravam o game de tiro “Doom”. Isso aumentou a hostilidade da opinião pública contra esses jogos?

Sim. Vale ressaltar que, mais uma vez, trata-se de um jogo cujo alvo não são seres humanos. Ainda assim, as associações antigames encomendaram pesquisas que buscassem uma confirmação científica do perigo representado por esses jogos. Até hoje centenas de acadêmicos se dedicam a isso. Mas muitos estudiosos rechaçam essas teorias. Sabem que existe um falso moralismo contra games. Isso não é ciência.

No livro, o senhor afirma que a condenação aos jogos é benéfica à Associação Nacional de Rifles dos EUA (NRA). Por quê?

Os games são usados como bodes expiatórios pela NRA, que defende a posse de armas de fogo, vendidas sem um sistema de checagem de eventuais problemas mentais de seus usuários. Após tragédias como Columbine, representantes da associação disseram que não é a arma que mata as pessoas, e sim os games. Formou-se, assim, uma cortina de fumaça. Prova disso é que, em fevereiro, após um tiroteio em uma escola na Flórida que resultou em 17 mortes, o presidente Donald Trump convocou uma reunião cujo tema eram games violentos. O desarmamento não foi debatido.

Como controlar o acesso de crianças e adolescentes a esses games?

Uma organização criada no final da década de 1980 faz a classificação indicativa dos jogos de acordo com a faixa etária. Mais de 30 mil foram avaliados. E menos de uma dezena tem aquilo que pode ser considerado discurso de ódio, como a incitação ao estupro. No Brasil, alguns games voltados para adultos foram banidos, supostamente para que as crianças não os vejam. Ora, se o produto informa que o acesso é restrito para crianças, cabe aos pais controlar os filhos.

Por que, apesar da vigilância da imprensa, de cientistas e associações, os jogos violentos são tão populares?

Nossa vida é entediante, regida por controles nas áreas de trabalho, finanças, leis. Um game que aborda a violência permite aos jogadores desempenhar uma conduta que, na vida real, levaria a danos de terceiros. Na criminologia, chamamos isso de “sedução da transgressão”. É a tentativa de afirmação da liberdade individual, uma forma inofensiva de experimentar as agressões. Se os jogos fossem tão influentes a ponto de incentivar pessoas a cometer algum dano, o lançamento de um novo game seria acompanhado por um pulo nas estatísticas criminais. E isso nunca foi confirmado em pesquisas.

O governo americano recorreu a um game, “America’s army”, para atrair jovens para o Exército em 2002. Já o “Muslim massacre”, criado por um usuário de fórum on-line, incentivou o genocídio religioso. Os jogos eletrônicos estão arrastando os jovens para a guerra?

Sim, eles podem ser usados como ferramentas de propaganda. “America’s army” foi feito para reduzir os gastos do Exército dos EUA com o recrutamento de soldados. Já o “Muslim massacre” é puro discurso de ódio, algo que deve ser condenado por ultrapassar todos os limites. Ambos são exemplos de como os games, que deveriam ser inofensivos, são carregados de ideologias, que podem ser tanto ligadas ao governo americano quanto a um grupo terrorista.

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Qual é a situação dos jogos violentos no Brasil?

Em 2016, José Eduardo Cardozo, ministro da Justiça do governo Dilma Rousseff, afirmou que a “apologia à violência” dos games alimenta a criminalidade. Há jogos que são proibidos no país sem que os magistrados os conheçam. Ou seja, todo o processo é baseado apenas na moral do juiz. Hoje tramitam no Congresso projetos de lei que reivindicam a proibição de determinados jogos. Vivemos uma sociedade autoritária em que as autoridades apitam no que podemos consumir. Ignora-se que a liberdade de expressão artística é um direito assegurado pela Constituição.

Qual é o futuro dos games violentos?

É pouco provável que o pânico moral desapareça completamente. Certas cenas sempre vão causar algum desconforto. Mas os jogos eletrônicos são um fenômeno que só tende a crescer e ganhar espaço na cultura contemporânea, uma indústria multimilionária que rivaliza com Hollywood, mesmo diante de tantos opositores. Há jogadores profissionais considerados celebridades, seguidos por milhares de pessoas nas redes sociais. Em junho, a Arena do Mineirinho, em Belo Horizonte, sediará uma liga esportiva profissional de games, e 30 mil ingressos já foram vendidos. Já estou me aproximando dos 50 anos e não tenho mais os mesmos reflexos, mas quero ver de perto como é esse fenômeno.

Via O Globo

Cantora, compositora, atriz, apresentadora de TV, blogueira, mãe e geek.