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Conquistei a guarda do meu filho, mas o deixei morar com o pai

Depoimento “Eu,mãe”: Joice Garcia, professora e mãe de um menino de 12 anos

Por um ano lutei judicialmente pela guarda do meu filho. Tive o alívio da vitória, mas decidi que ele pode morar com o pai. Estamos conversando sobre como as coisas vão acontecer. Dia a dia estou construindo a tranquilidade para conviver com essa decisão, mas tem sido muito difícil. Eu estou confiando na relação que construímos para que ele possa ir e para que eu fique em paz comigo mesma. Lutei muito para chegar até aqui.

Eu queria ser mãe, mas não naquele momento. Estava no terceiro ano da faculdade quando me casei. Três meses depois, engravidei. Não houve planejamento. Foi um susto no princípio. Eu não me via como mãe, não estava preparada para a responsabilidade. Tinha uma visão romântica e achava que ter um filho não ia interferir em nada. Quando eu engravidei, meu ex-marido ficou super feliz. Eu desconfio que ele conduziu as coisas para que eu engravidasse naquele momento. É importante dizer aqui que vivia numa relação violência e abusiva. Uma semana depois de nos casarmos, ele me jogou na cama, me estapeava e dizia que ia me educar como meu pai não havia feito.

Nessa época, eu tomava um remédio que poderia afetar os efeitos do anticoncepcional e ele sabia disso. Mas ignorou. O nosso relacionamento não era legal e acredito que ele temia o fim. Nós quase nunca transávamos, mas na semana que engravidei ele quis ter relações sexuais todos os dias. É uma coisa da qual não tenho certeza, mas considerando o comportamento extremamente manipulador dele, não duvido.

A gravidez foi muito difícil. Eu tinha as obrigações acadêmicas do penúltimo ano, faltava dinheiro e as agressões só pioravam. Tudo acontecia em ciclos. Tinha a fase dos carinhos, das flores, das agressões verbais, da manipulação, da culpabilização e, por fim, as agressões físicas como punição. Ele dizia que não ia me espancar pois isso deixava marcas e ele tinha que evitar.

Quando eu estava no sétimo mês de gravidez, ele empurrou e eu bati as costas na parede e caí. Ali eu pensei que ele teria machucado o bebê, além de mim. Meu filho nasceu com uma cicatriz na cabeça. Não uma marca de nascença. Uma cicatriz. E mesmo que não tenha sido esse episódio, até hoje olho para a marca na cabeça do meu menino e penso em tudo que sofremos. Em silêncio.

Eu nunca tinha contado nada a ninguém. Por medo, por vergonha, por culpa. Eu achava que a culpa era minha.

Quando meu filho nasceu, passou tanta coisa pela minha cabeça. Eu só pensava se iria dar conta sozinha. Até amamentar era um desafio pra mim. Não havia espaço e tranquilidade para ser mãe, mas eu acreditava que o nosso filho faria o pai mudar. Mas piorou.

Ele me agredia psicologicamente, cobrando de mim uma postura de “mãe perfeita”. Eu fazia tudo sozinha: cuidava do nosso filho, da casa e escrevia meu projeto de conclusão de curso. Sempre chorando. Me sentia rejeitada, feia, incapaz. Não me reconhecia nem na função de esposa nem na de mãe. Pra mim, elas eram uma coisa só. Achava que tinha que dar conta das duas e fazer tudo com excelência. Sempre achava que estava errando na louça que não lavava, quando “perdia” a hora de trocar fralda porque estava estudando.

Na época morávamos numa cidade e eu fazia faculdade em outra. Deixava meu filho com meus pais e ia estudar. Esse era meu momento de tranquilidade. Ele estava seguro. E eu também.
Lembro que um dia, pouco antes de sair, apanhei. Quando cheguei onde estudava, contei para uma amiga. Foi a primeira vez que falei das violências que sofria. Tinha medo dos julgamentos. Eu queria apoio, colo. Queria que me dissessem que eu não tinha culpa. Tirei 200 kg das costas e então comecei a mudar.

Passei a observar mais as atitudes dele como vítima e não como culpada. Quando a Lei Maria da Penha entrou em vigência, ele parou de me agredir fisicamente. Demorou alguns anos ainda. Comecei a trabalhar. Me apeguei à minha profissão e ao meu filho, que já estava com oito anos. Eu sabia que um dia poderia ser uma pessoa de novo. Então, eu pedi o divórcio. Inconformado com isso, ele levou quatro meses para sair de casa. Eu tinha pressa em me libertar e brigávamos todos os dias. Ele aceitou o fim, mas contou ao nosso filho que íamos nos separar porque eu nunca o perdoei e nunca superei a violência.

Eu fiquei possessa com aquilo. Não queria que meu filho soubesse. Mas, aos oito anos, ele me defendeu. Chorou muito. Disse que o pai nunca respeitou a mim ou a vida dele, nem mesmo quando ele estava na barriga. E passou a questionar meu silêncio. E foi nesse momento que a alienação parental começou. Ele sabia que, em algum momento, eu ia contar e se antecipou.

Mas quando eu me separei, me sentia capaz de tudo. Estava feliz, radiante em cuidar do meu filho, em pensar na minha carreira, em me divertir com os amigos. Meus pais me ajudaram e compraram minha casa para dar a metade ao ex-marido e me libertar de vez. Passamos a morar todos juntos e eles me apoiavam na educação do meu filho.

Mas tudo mudou quando decidi me casar novamente e mudar de estado.

A partir daí, ele começou a dizer ao nosso filho que eles deveriam morar juntos. O convenceu disso e pediu para ele não me contar esses planos. E entrou com um processo de alienação parental com modificação de guarda. Foi horrível. Ele chegou a entrar com uma liminar me impedindo de levar nosso filho comigo alegando que eu o tinha tirado da escola antes do fim do período letivo. O juiz entendeu que eu estava realmente fugindo com a criança. O que mais me desgastava eram as mentiras e as ofensas que afetavam a minha relação com meu filho. Chegaram a questionar a violência que eu sofria. Minha vida tinha parado de novo. Respirei fundo e mudei de estado. Deixei meu filho com meus pais, por quatro meses. Ele estava seguro. E fui construir uma base para quando ele voltasse.

Ao fim de um ano, venci o processo.

Então, nas últimas férias, meu filho voltou da casa do pai muito diferente de como ele foi. Disse que queria morar com ele, mas sem processo.

Eu concordei.

Ele vai por um período de seis meses, como uma experiência. Choro todos os dias. Mas está na hora de deixar meu filho crescer e perceber as coisas por si só. Ele me defende diante do pai e da família paterna mas eles oferecem uma vida que é muito distante do que ofereço: cinema, diversão e sorvete todos os dias, por exemplo. Eu fiquei com a tarefa de sustentar e educar. Falta tempo para cinema e diversão.

Além disso, ele tem 12 anos de idade. A decisão dele conta no processo. Não preciso daquilo de novo. Eu sei que vou ser julgada e apedrejada por deixar ele ir. Mas foi um longo caminho. Meu filho tem uma relação com o pai. É direito deles viverem isso. Eu sei que ele vai ser bem cuidado e amado. Mas eu choro todos os dias com medo da alienação nos afastar. Eu e meu menino passamos por tantas coisas juntos.

Hoje, olho para aquela menina que eu era quando engravidou e, se pudesse, diria a ela que nada daquilo precisava ter acontecido. Que ela é forte. E diria para a mulher que enfrentou aquele processo que vai ficar tudo bem. É o que tenho me dito todos os dias: está tudo bem. Me pergunto em que momento eu mudei. Não sei. A vida exigiu que eu me resgatasse. Que eu me salvasse. Em algum momento, passei a sentir um amor imenso por mim e isso mudou tudo.